COLEÇÃO CORREDORES BIOCULTURAIS DO BRASIL 6 Havia uma velhinha que vivia em uma comunidade cercada de sol e lua. Ela levantava todos os dias muito cedo, colocava sobre os ombros um saco de sementes e subia o sopé da montanha, enquanto todos dormiam. A montanha não tinha mais vegetação, era fria e sem vida, e assim estavam todos na comunidade, solitários e individuais. A única vibração viva e calorosa vinha das crianças. Só elas arriscavam subir a montanha, e quando avistavam a velhinha curvada sobre o corpo, gritavam: “velhinha, o que a senhora está fazendo?” Ela levantava o corpo como um ritual, secava o suor do rosto e dizia: “eu estou mudando a face do cerrado”. Sua voz ecoava no vazio das alturas e todos corriam montanha abaixo dando risadas e temerosos, todos julgavam que a velhinha não tinha um juízo perfeito. O tempo passou, a meninada cresceu, casaram, e uma daquelas crianças nunca esquece de sua infância. Um dia a família decidiu visitar a comunidade e, ao chegar, a mulher não mais reconheceu o lugar. A montanha estava florida com flamboyant, Jacarandá, ipês de todas as cores, tinha todos os frutos do cerrado, mamacadela, pequi, araticum, mangaba, murici, guapeva, marmelada, uma diversidade enorme. O lugar estava ensolarado, as pessoas sorriam, conversavam, ligadas por uma intimidade nunca antes vivida naquele lugar, Então a Mulher que outrora fora a criança daquele lugar, perguntou a um senhor de certa idade, que ela lembrava bem quem era: quando foi que tudo isso aconteceu? O aldeão respondeu: você lembra da velhinha que subia a montanha? Foi ela que mudou a face do cerrado. Ela, com seus hábitos estranhos, muito nos ensinou: floresceu e frutificou a montanha, ensinou a importância do viver em comunidade, da visita, do mutirão, do coletivo. Ela foi a guardiã das águas do cerrado, de sua fauna e flora. A Mulher chorou ao fazer memória da velhinha, e lembrou da sua fala: “eu estou mudando a face do cerrado”. Que sejamos velhinhas incansáveis na luta em defesa do cerrado, espalhando sementes de vida e esperança. Conto de Lucimone Maria de Oliveira MUDANDO A FACE DO CERRADO
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