A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O MERCOSUL LUCIANE KLEIN VIEIRA Organizadora Casa Leiria
Este livro contempla os resultados derivados do Módulo Jean Monnet “Lessons from the Charter of Fundamental Rights of the European Union for the consolidation of the MERCOSUR Citizenship Statute” – FREECEU, projeto nº 101126743, coordenado pela Profa. Dra. Luciane Klein Vieira e desenvolvido na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, no período 2023-2026. O Módulo, financiado pelo Programa Erasmus + da Comissão Europeia, está vinculado ao Edital ERASMUS- -JMO-2023-MODULE e tem como objetivo estudar, compreender e divulgar as contribuições da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia para a consolidação e aperfeiçoamento do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL, no que se refere à circulação dos trabalhadores migrantes, proteção do consumidor, proteção de dados e exercício da cidadania. A publicação deste livro forma parte das atividades do Programa de Pós- Graduação em Direito da Unisinos, financiadas pelo PROEX/AUXPE nº 1649/2024.
A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O MERCOSUL
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – Unisinos Reitor Prof. Dr. Pe. Sergio Eduardo Mariucci, S. J. Vice-reitor Prof. Dr. Artur Eugênio Jacobus Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais Prof. Dr. Guilherme Trez Diretora da Unidade de Pesquisa e Pós-Graduação Prof.ª Dr.ª Maura Corcini Lopes Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Prof. Dr. Anderson Vichinkeski Teixeira COMITÊ CIENTÍFICO Augusto Jaeger Júnior (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) Claudia Madrid Martínez (Universidad de Antioquia, Colômbia) Joséli Fiorin Gomes (Universidade Federal de Santa Maria, Brasil) Sergio Sebastián Barocelli (Universidad de Buenos Aires, Argentina) Wagner Menezes (Universidade de São Paulo, Brasil) EDITORA CASA LEIRIA – CONSELHO EDITORIAL Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) *Acknowledgements* The European Commission support for the production of this publication does not constitute an endorsement of the contents which reflects the views only of the authors, and the Commission cannot be held responsible for any use which may be made of the information contained therein. This project has been selected as a Jean Monnet Module and funded with support from the European Commission. This publication reflects the views of the authors alone, and the Commission and the European Parliament cannot be held responsible for any use which may be made of the information contained herein.
CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2024 LUCIANE KLEIN VIEIRA ORGANIZADORA A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O MERCOSUL
A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O MERCOSUL Editoração: Casa Leiria Revisão: Luciane Klein Vieira Imagem da capa cedida pela autora Angélica Patiño, Argentina. “Bajo un cielo estrellado”, 2024. Técnica digital art. Financiamento da organização do livro: Programa Erasmus + da Comissão Europeia, Edital ERASMUS-JMO- -2023-MODULE, projeto nº 101126743 denominado “Lessons from the Charter of Fundamental Rights of the European Union for the Consolidation of the MERCOSUR Citizenship Statute” – FREECEU Financiamento da publicação: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Este livro foi publicado com o apoio do Proex-Auxpe 1649/2024 Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 DOI: https://doi.org/10.29327/5433241 C322 A carta de direitos fundamentais da União Europeia: contribuições para o Mercosul [recurso eletrônico]. / organização Luciane Klein Vieira, Escola de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. Disponível em: <http://www.casaleiriaacervo.com.br/direito/ carta/index.html> Conteúdo bilingue português-espanhol. ISBN 978-85-9509-137-5 1. Direito das organizações internacionais – Direitos fundamentais. 2. Direitos fundamentais – União Europeia – Mercosul. 3. Carta de direitos fundamentais – União Europeia. 4. Estatuto da cidadania – Mercosul. I. Vieira, Luciane Klein (Org.). II. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Escola de Direito. CDU 341.1
“Petits pas, grands effets.” (Jean Monnet)
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia: contribuições para o MERCOSUL 8 SUMÁRIO 11 Apresentação Luciane Klein Vieira 14 A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa Jamile Bergamaschine Mata Diz Pedro Campos Araújo Corgozinho 33 As contribuições do processo de construção da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia para a consolidação do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL Luciane Klein Vieira EIXO 1 – PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR/ PROTECCIÓN DEL CONSUMIDOR 60 Los derechos del consumidor y los derechos humanos: una especial referencia a la Carta de Derechos Fundamentales de la Unión Europea y a la Constitución Nacional de los Estados Latinoamericanos Roberto Ruiz Díaz Labrano 82 Cerca de meio século depois: as políticas de consumidores na União Europeia Mário Frota 113 Proteção do consumidor no Estatuto da Cidadania do MERCOSUL frente à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Laís Maria Belchior Gondim Tarin Cristino Frota Mont’Alverne 133 A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e a proteção do consumidor: um modelo para o MERCOSUL? André de Carvalho Ramos Mariana Sebalhos Jorge 159 O modelo europeu de resolução alternativa de conflitos de consumo: reflexões para o MERCOSUL Tatiana Cardoso Squeff Bianca Guimarães Silva 188 Breve análisis de la jurisprudencia del TJUE en materia de reclamaciones de pasajeros de avión por denegación de embarque, cancelación y retrasos en sus vuelos en el marco del art. 38 de la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea Juan M. Velázquez Gardeta
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia: contribuições para o MERCOSUL 9 EIXO 2 – PROTEÇÃO DE DADOS/PROTECCIÓN DE DATOS 218 De nuevo en torno al tema de la protección de datos en la Unión Europea Carlos Francisco Molina del Pozo 242 Derechos e intereses fundamentales en la colaboración digital euro-latinoamericana Roberto Cippitani Isabel Cornejo-Plaza 267 La protección de datos en la Unión Europea: análisis de una década de ampliación del Reglamento (UE) 2016/679 del Parlamento Europeo y del Consejo de 27 de abril de 2016 relativo a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales y a la libre circulación de estos datos y por el que se deroga la Directiva 95/46/CE Virginia Saldaña Ortega 288 A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD): uma análise das contribuições do Direito Europeu para os países do MERCOSUL Têmis Limberger Juliana Paganini 308 Integrando a soberania de dados indígenas no MERCOSUL: possibilidades de diálogo com a União Europeia Carla Ribeiro Volpini Silva Júlia Péret Tasende Társia EIXO 3 – PROTEÇÃO DO TRABALHADOR MIGRANTE/ PROTECCIÓN DEL TRABAJADOR MIGRANTE 332 A Carta de Direitos Fundamentais e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre trabalhadores migrantes deslocados Jânia Saldanha 359 La UE y el MERCOSUR en perspectiva de migración laboral: una oportunidad para la cooperación internacional con miras en los derechos fundamentales Leopoldo M. A. Godio 379 El derecho a la reagrupación familiar como corolario de la ciudadanía europea: aportes y enseñanzas para el MERCOSUR Luciana B. Scotti
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia: contribuições para o MERCOSUL 10 418 Liberdade de circulação no MERCOSUL (com mecanismos compensatórios à segurança regional): aspectos de uma perspectiva comparada Gustavo Oliveira Vieira Rafael Euclides Seidel Batista EIXO 4 – EXERCÍCIO DA CIDADANIA/EJERCICIO DE LA CIUDADANÍA 436 La Carta de Derechos Fundamentales de la Unión Europea y el ejercicio de la ciudadanía europea Sandra C. Negro 459 A cidadania e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Anderson Vichinkeski Teixeira 470 O exercício da cidadania nos processos de integração regional europeu e mercosulino Aline Beltrame de Moura Carolina Attuati 499 Sinergias entre a cidadania europeia e a mercosulina Claudia Loureiro 523 Democracia e cidadania no MERCOSUL entre o veneno e a cura: estruturas intergovernamentais e a autocontenção (ou falta de ousadia) como qualidade institucional Raphael Carvalho de Vasconcelos Celso de Oliveira Santos
11 APRESENTAÇÃO Luciane Klein Vieira Este livro é o resultado de pesquisas realizadas por professores europeus e latino-americanos, referentes à trajetória de implementação dos direitos e garantias incluídos na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Constitui-se num dos produtos do Módulo Jean Monnet “Lessons from the Charter of Fundamental Rights of the European Union for the consolidation of the MERCOSUR Citizenship Statute”, de acrônimo FREECEU, referente ao Edital ERASMUS-JMO-2023-MODULE, projeto n.º 101126743, coordenado pela Profa. Dra. Luciane Klein Vieira e implementado no âmbito da Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Brasil, no período 2023-2026. Para o desenvolvimento das atividades que estão vinculadas ao Módulo Jean Monnet, conta-se com o financiamento do Programa Erasmus+ da Comissão Europeia. Este Programa, entre outras finalidades, fomenta “Ações Jean Monnet no Ensino Superior”, destinando-se, neste caso, a apoiar instituições de Ensino Superior, dentro e fora da Europa, para promover o ensino e a pesquisa sobre a integração europeia, proporcionando, assim, o debate e o intercâmbio de ideias com relação às prioridades da Agenda da União Europeia e seus respectivos valores. Neste âmbito, o Módulo Jean Monnet FREECEU procura identificar quais seriam as principais contribuições da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia para a consolidação do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL, com relação à proteção do trabalhador migrante, à proteção do consumidor, à proteção de dados e ao exercício de ações vinculadas à cidadania. Para isso, possui como objetivos específicos: a) conhecer como a Carta de Direitos Fundamentais aborda os direitos e garantias do trabalhador migrante, em termos de igualdade e não discriminação, a fim de evidenciar como os mesmos são implementados, no bloco europeu e de que forma é possível reformar os instrumentos que deram base à criação do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL em matéria migratória; b) verificar qual é o patamar de proteção ao consumidor atribuído pela Carta de Direitos Fundamentais, e de que forma este nível de proteção impacta na construção do direito da União Europeia, a fim de divulgar esses direitos e de constatar quais seriam as principais contribuições europeias para a expansão dos direitos do consumidor, previstos no Estatuto da Cidadania do MERCOSUL; c) averiguar de que forma a Carta de Direitos Fundamentais trata a proteção de dados pessoais, e como se efetiva no bloco europeu e fora dele a tutela referida, a fim de poder estabelecer elementos que contribuam para a criação de normativa e políticas públicas que sirvam de base para a reforma do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL; e d) identificar quais são os principais direitos e garan-
Luciane Klein Vieira 12 tias que permitem ao cidadão europeu participar da vida do bloco e dos processos de tomada de decisão que evidenciam o exercício da cidadania, de forma a contribuir para a criação de espaços no MERCOSUL destinados a superar o déficit democrático existente na região e que, por sua vez, resultem em reforma do Estatuto da Cidadania. Para cumprir com os objetivos propostos, esta obra está organizada em quatro eixos temáticos, a saber: proteção do consumidor; proteção de dados; proteção do trabalhador migrante; e exercício da cidadania. Iniciando as discussões, apresentam-se os textos de Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Gorgozinho (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil), bem como de Luciane Klein Vieira (Unisinos, Brasil), que retratam o árduo processo de construção do princípio geral de proteção dos direitos humanos, no bloco europeu, a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e da proclamação solene da Carta de Direitos Fundamentais. Na sequência, inaugurando o primeiro eixo temático, referente à proteção do consumidor e ao elevado nível de tutela previsto pela Carta de Direitos Fundamentais, encontram-se as contribuições de Roberto Ruiz Díaz Labrano (Universidad Nacional de Asunción, Paraguai), Mário Frota (apDC – Direito do Consumo, Portugal), Laís Maria Belchior Gondim e Tarin Cristino Frota Mont’Alverne (Universidade Federal do Ceará, Brasil), André de Carvalho Ramos e Mariana Sebalhos Jorge (Universidade de São Paulo, Brasil), Tatiana Cardoso Squeff e Bianca Guimarães Silva (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil) e Juan Manuel Velázquez Gardeta (Universidad del País Vasco, Espanha). Já no segundo eixo temático, pertinente à proteção de dados pessoais e aos standards estabelecidos pela Carta de Direitos Fundamentais, encontram-se as pesquisas de Carlos Francisco Molina del Pozo (Universidad Alcalá de Henares, Espanha), Roberto Cippitani (Università degli Studi di Perugia, Itália) e Isabel Cornejo-Plaza (Universidad Autónoma de Chile), Virginia Saldaña Ortega (Universidad Isabel I, Espanha), Têmis Limberger e Juliana Paganini (Unisinos, Brasil) e de Carla Ribeiro Volpini Silva e Júlia Péret Tasende Társia (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil). Com relação à proteção do trabalhador migrante e à livre circulação de pessoas, temática desenvolvida no terceiro eixo da obra que se apresenta, estão as reflexões de Jânia Saldanha (Unisinos, Brasil), Leopoldo Godio (Universidad de Buenos Aires, Argentina), Luciana B. Scotti (Universidad de Buenos Aires, Argentina) e de Gustavo Oliveira Vieira e Rafael Euclides Seidel Batista (Universidade da Integração Latino-Americana, Brasil). Finalmente, no quarto eixo temático, relativo ao exercício da cidadania e às previsões da Carta de Direitos Fundamentais, encontram-se as contribuições de Sandra Negro (Universidad de Buenos Aires, Argentina), Anderson Vichinkeski Teixeira (Unisinos, Brasil), Aline Beltrame de Moura e Carolina Attuati (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil), Claudia Loureiro (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil) e de Raphael Carvalho de Vasconcelos e Celso de Oliveira Santos (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil).
Apresentação 13 As ponderações, críticas e reflexões contempladas nos textos que compõem esta obra, seguramente servirão de base teórica para o alargamento da proteção do consumidor, dos dados pessoais, do trabalhador migrante e para o fomento do exercício da participação do cidadão mercosulino no processo de tomada de decisões do bloco sul-americano, evidenciando a necessária reforma que deve haver no Estatuto da Cidadania do MERCOSUL, para consolidar a tão almejada noção de cidadania regional. Por fim, a organizadora agradece ao Programa Erasmus+ da Comissão Europeia por ter possibilitado a realização desta obra, bem como à Capes pelo fomento à publicação. Luciane Klein Vieira Coordenadora do Módulo Jean Monnet FREECEU São Leopoldo/RS, setembro de 2024.
14 A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA E A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: DE ROMA A LISBOA LA EVOLUCIÓN JURISPRUDENCIAL DEL TRIBUNAL DE JUSTICIA DE LA UNIÓN EUROPEA Y LA CARTA DE DERECHOS FUNDAMENTALES: DE ROMA A LISBOA THE CASE-LAW OF THE COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION AND THE PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS’ CHARTER: FROM ROME TO LISBON Jamile Bergamaschine Mata Diz1 Pedro Campos Araújo Corgozinho2 Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a interpretação dos direitos fundamentais e sua consequente evolução temporal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Busca-se examinar se atuação da referida instituição jurisdicional serviu como parâmetro para o fortalecimento da proteção destes direitos, na medida em que supôs alteração no sistema jurídico interno dos Estados-Membros da União Europeia. Mediante a utilização dos métodos histórico e dedutivo, pretende-se avaliar se a interpretação dada aos direitos fundamentais serve como cânone interpretativo para outros direitos. Conclui-se que, apesar de exercer o poder jurisdicional de forma fragmentada e não-uniforme, através do estudo de casos considerados emblemáticos, o Tribunal corroborou a relevância de tais direitos, reconhecendo-os como princípios gerais ancorados nas tradições jurídicas nacionais, efetivando sua aplicação pelo sistema jurídico europeu. Palavras-chave: Interpretação. Carta de Direitos Fundamentais. União Europeia. Tribunal de Justiça. Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la interpretación de los derechos fundamentales y su consiguiente evolución temporal por parte del Tribunal 1 Coordenadora do Centro de Excelência Europeu e da Cátedra Jean Monnet Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professora da Faculdade de Direito da UFMG. Doutora em Direito Comunitário – Universidad de Alcalá, Espanha. Mestre em Instituições e Políticas da União Europeia pela Universidad Camilo José Cela (UCJC), Madri, Espanha. E-mail: jmatadiz@yahoo.com.br 2 Graduado em Filosofia e em Direito pela UFMG/Brasil. Mestre pela Faculdade de Direito da UFMG. Membro do Centro de Excelência Jean Monnet Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: pcorgozinho@yahoo.com.br DOI: https://doi.org/10.29327/5433241.1-1
A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa 15 de Justicia de la Unión Europea. El objetivo es examinar si la actuación de la mencionada institución judicial sirvió como parámetro para fortalecer la protección de estos derechos, ya que supuso cambios en el ordenamiento jurídico interno de los Estados-Miembros de la Unión Europea. Utilizando los métodos histórico y deductivo, se pretende evaluar si la interpretación dada a los derechos fundamentales sirve como canon interpretativo de otros derechos. Se concluye que, a pesar de ejercer el poder jurisdiccional de manera fragmentada y no uniforme, a través del estudio de casos considerados emblemáticos, la Corte corroboró la relevancia de tales derechos, reconociéndolos como principios generales anclados en las tradiciones jurídicas nacionales, implementando su aplicación por el sistema jurídico europeo. Palabras clave: Interpretación. Carta de Derechos Fundamentales. Unión Europea. Tribunal de Justicia. Abstract: The purpose of this article is to analyze the interpretation of fundamental rights and their consequent temporal evolution by the Court of Justice of the European Union. It seeks to examine whether the judicial institution’s role served as a parameter for the strengthening of the protection of these rights, since it supposed a change in the internal legal system of the Member States of the European Union. Through the use of historical and deductive methods we intend to evaluate whether the interpretation given to fundamental rights serves as an interpretative canon for other rights. It is concluded that, despite exercising judicial power in a fragmented and non-uniform way, through the study of cases considered to be emblematic, the Court corroborated the relevance of these rights, recognizing them as general principles anchored in national legal traditions, European legal system. Keywords: Interpretation. Fundamental rights’ Charter. European Union. Court of justice. 1. Introdução A União Europeia, desde o início do processo de integração, com o advento do Tratado de Roma (1957), pautou-se em valores e objetivos voltados para a proteção dos direitos fundamentais, a democracia, o desenvolvimento regional e as garantias emanadas das tradições jurídicas de cada Estado. Contudo, apesar de um inegável esforço das instituições europeias em prol da defesa de tais valores e direitos, foi somente no ano de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa (também denominado Tratado da União Europeia), que o sistema europeu incorpora, com efeito vinculante – na esteira do disposto no artigo 6º do referido Tratado – uma Carta de Direitos Fundamentais a ser aplicada por todos os Estados-Membros. A entrada em vigor da Carta representou um passo importante na consolidação dos direitos fundamentais, não obstante a defesa e garantia de tais direitos já vinha sendo reiteradamente admitida pela construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE).
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Corgozinho 16 Neste sentido, o objetivo do presente trabalho será, justamente, analisar como se deu a evolução das decisões do Tribunal comunitário no que tange à proteção dos direitos fundamentais, desde uma concepção individual até difusa, mesmo diante da ausência de um rol normativo explícito durante o período de 1957 até 2009. O estudo das principais decisões relativas ao tema demonstra como a concepção protetiva do TJUE abarcou elementos significativos em prol dos direitos fundamentais. O enfoque do presente trabalho perpassa, portanto, pelo estudo dos casos considerados relevantes para que essa construção pudesse ocorrer concomitantemente com o aprofundamento da integração no espaço europeu. A eleição dos casos a serem analisados deveu-se, em grande medida, a três aspectos primordiais: a) a discussão do alcance dos direitos fundamentais, especialmente durante as décadas de 1950 aos anos 1980 – dada a natureza eminentemente econômica que caracterizava o processo de integração europeu – e das competências dadas às instituições comunitárias no supracitado período; b) a conjugação dos valores da União, presentes de forma implícita no Tratado de Roma e explicitados a partir do Ato Único Europeu (Comunidades Europeias, 1986), com a normativa criada pela então Comunidade Europeia visando assegurar a existência do mercado comum; e c) a necessidade de que houvesse um “tratamento diferenciado e dissociado” da proteção nacional dos direitos fundamentais, uma vez que a normativa europeia poderia representar uma violação de tais direitos, sem que houvesse, contudo, meios comuns para assegurar a proteção, no âmbito da associação europeia, dos direitos fundamentais. Neste último caso, importante já ressaltar que a norma comunitária, pelo princípio da primazia reconhecido pelo TJUE, prevalece sobre a norma nacional e, portanto, a aplicação dessa norma deveria ser fiscalizada e controlada pelo referido Tribunal, e não somente pelos Tribunais nacionais. A pertinência do tema proposto pode ser verificada no sentido de estabelecer como a atividade jurisdicional colaborou e dinamizou a proteção dos direitos fundamentais, ainda quando constatada a lacuna legislativa que caracterizava um sistema próprio a ser aplicado pelos Estados-Membros da União. Conforme será analisado, a compreensão, conteúdo e alcance dos efeitos dos direitos assegurados pelo Tribunal sofreu significativa influência dos princípios gerais de direito reconhecidos pelos Estados-Membros e do sistema europeu de direitos humanos, expressado notadamente pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e respectiva Corte judicial. Vale ressaltar que, para efeitos do presente trabalho, a expressão “direitos fundamentais” deve ser entendida a partir da própria concepção apresentada pelo TJUE, consoante os casos analisados. Nesta perspectiva, compreende-se que os direitos fundamentais na União Europeia se originam da construção histórica-dogmática que
A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa 17 desemboca no reconhecimento da tradição constitucional comum e dos princípios gerais aplicados pelos Estados-Membros. A metodologia deste trabalho centrou-se nos aspectos principais estabelecidos para uma pesquisa interdisciplinar que envolve temas de direitos fundamentais e seu tratamento por uma ordem legal própria, como é o caso da União Europeia, devido especialmente ao caráter específico e singular que deve estar presente em toda análise de um sistema jurídico cujo foco se baseia em conferir maior proteção a tais direitos. Neste sentido, utilizamos métodos que permitam analisar em que medida a atuação do TJUE avança para elevar o nível de proteção, ou, ainda, para dinamizar os sistemas nacionais. Os métodos histórico e dedutivo permitem estabelecer as premissas conceituais e práticas aplicadas aos direitos fundamentais, estabelecendo os cânones interpretativos adotados pelo mencionado Tribunal e sua possível aplicação a outros tipos de direitos. 2. A aplicação da Convenção Europeia de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias A relação entre a União Europeia e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) também se desenvolveu, primeiro, através da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), num processo que remonta ao acórdão Nold (1974), intensifica-se com o Ato Único Europeu (Comunidades Europeias, 1986) e atinge um ponto de viragem com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Como já ressaltado, a princípio, o TJCE estabeleceu que os direitos fundamentais deveriam ser protegidos quando da aplicação do Direito Comunitário sob o estatuto de princípios gerais do direito (TJCE, 1969, Stauder). Na ausência de um catálogo comunitário destes direitos, estes deveriam ser buscados nas tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros (TJCE, 1970, Internationale Handelsgesellschaft). Enfim, reconhece-se também a inspiração, como fonte interpretativa, dos direitos fundamentais previstos em instrumentos internacionais com os quais os Estados-Membros tinham relação, como a CEDH (TJCE, 1974, Nold). Se já não era claro o suficiente que o instrumento internacional mais próximo das Comunidades era justamente a CEDH, isso viria a ser explicitamente dito em acórdãos como Johnston3, de 15 de maio de 1986. Na fundamentação da decisão, o Tribunal afirmou que: 3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal de 15 de maio de 1986. Marguerite Johnston contra Chief Constable of the Royal Ulster Constabulary. (Processo C-222/84). Luxemburgo: TJCE, 15 maio 1986. Disponível em: http://curia. europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d62d3f30fc646648179e5cb12d83bf5280.
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Corgozinho 18 O controle jurisdicional imposto [...] é a expressão de um princípio geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns dos Estados- -Membros. Este princípio foi igualmente consagrado pelos artigos 6º e 13º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950. Como foi reconhecido pela declaração comum da Assembleia, do Conselho e da Comissão, de 5 de Abril de 1977 (JO C 103, p. 1), e pela jurisprudência do Tribunal, convém ter em conta, no quadro do direito comunitário, os princípios em que se inspira essa convenção. (Consideração nº 18, grifo nosso). Interessante notar que essa jurisprudência reforça o papel da Convenção logo após a assinatura do Ato Único Europeu (AUE), que se deu em fevereiro do mesmo ano de 1986. Este instrumento é fundamental para o aprofundamento da relação entre a União Europeia e a CEDH, já que é ali que tal relação é afirmada em ato jurídico com natureza de Tratado. Assim, o Preâmbulo do AUE prevê que os Estados-Membros decidiram promover conjuntamente a democracia, com base nos direitos fundamentais reconhecidos nas Constituições legislações dos Estados-Membros, na Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta Social Europeia, nomeadamente a liberdade, a igualdade e a justiça social.4 Dessa forma, o Ato Único consagrou, como objetivos das Comunidades, a evolução jurisprudencial que o TJCE consolidara. Esta previsão seria posteriormente confirmada por vasta jurisprudência; a título de exemplo, num acórdão de 18 de maio de 1989, Comissão contra República Federal da Alemanha5, o Tribunal se referiu diretamente à Convenção, e fundamentou tal referência no Preâmbulo do Ato Único: [...] é preciso interpretar o Regulamento nº 1612/68 à luz da exigência do respeito da vida familiar mencionado pelo artigo 8 da Convenção Europeia de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal, reafirmada no preâmbulo do Ato Único Europeu, são reconhecidos pelo direito comunitário. (Consideração nº 10, tradução nossa, grifo nosso). e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxyMc3b0?text=&docid=93487&pageIndex=0&doclang=PT&mo de=lst&dir=&occ=first &part=1&cid=156510. Acesso em: 25 jul. 2024. 4 COMUNIDADES EUROPEIAS. Ato Único Europeu, Preâmbulo. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 169, p. 1-28, 29 jun. 1987. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/ legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11986U/TXT&from=PT. Acesso em: 25 jul. 2024. 5 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal de 18 de maio de 1989. Comissão das Comunidades Europeias contra República Federal da Alemanha (Processo C-249/86). Luxemburgo: TJCE, 18 maio 1989. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/ legal-content/FR/TXT/?uri=CELEX%3A61986CJ0249. Acesso em: 25 jul. 2024.
A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa 19 Outro exemplo dessa aproximação entre o direito da União e a CEDH, dessa vez vinculado a um ato de direito derivado, é a Diretiva relativa à “televisão sem fronteiras”6 (como foi denominada), de 3 de outubro de 1989, onde o Conselho das Comunidades Europeias considerou que esse direito aplicado à difusão e à distribuição de serviços de televisão constitui igualmente uma manifestação específica, em direito comunitário, de um princípio mais geral, a saber, a liberdade de expressão, tal como está consagrada no nº 1 do artigo 10º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ratificada por todos os Estados-Membros; que, por essa razão, a adoção de diretivas relativas à atividade de difusão e de distribuição de programas de televisão deve garantir o livre exercício dessa atividade à luz do referido artigo, sob a única reserva dos limites previstos no nº 2 desse mesmo artigo e no nº 1 do artigo 56º do Tratado.7 (grifo nosso) Já fora estabelecido, portanto, que os direitos fundamentais gozavam, para as Comunidades, do mesmo estatuto dos princípios gerais do direito, e que estes se ancoraram também em instrumentos internacionais como a CEDH. O que ainda não estava claro era o alcance de sua aplicação. Contudo, em acórdão de 1989, no caso Wachauf8, o TJCE estenderia o controle e a interpretação conforme os direitos fundamentais até mesmo aos atos nacionais, já que “as exigências que decorrem da proteção dos direitos fundamentais na ordem jurídica comunitária [...] vinculam igualmente os Estados-Membros quando da implementação das regulamentações comunitárias” (TJCE, 1989, consideração nº 19). Este é um importante esclarecimento do entendimento jurisprudencial comunitário, pois, quatro anos antes, no acórdão Cinéthèque9, de 11 de julho, de 1985, o mesmo Tribunal afirmara que, apesar de lhe incumbir a garantia do respeito aos direitos fundamentais, “não lhe cabe [...] examinar a compatibilidade com a Con6 CONSELHO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (CCE). Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L 298, p. 23-30, 17 out. 1989 Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex:31989L0552. Acesso em: 25 jul. 2024. 7 Ibidem. 8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal (Terceira Secção) de 13 de julho de 1989. Hubert Wachauf contra Bundesamt für Ernährung und Forstwirtschaft (Processo C-5/88). Luxemburgo: TJCE, 13 julho 1989. Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=95830&pageIndex=0&doclang=PT& mode=lst &dir=&occ=first&part =1&cid=554311. Acesso em: 25 jul. 2024. 9 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal de 11 de julho de 1985. Cinéthèque SA e outros contra Fédération nationale des cinémas français (Processos C-60 e C-61/84). Luxemburgo: TJCE, 11 jul. 1985. Disponível em: http://eur-lex.euro pa.eu/legal-content/FR/TXT/?uri=CELEX%3A61984CJ0060. Acesso em: 25 jul. 2024.
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Corgozinho 20 venção Europeia de uma lei nacional que [...] pertença a um âmbito reservado à apreciação do legislador nacional” (Consideração nº 26, grifo nosso). Se os dois acórdãos parecem conter uma contradição, representando um ponto de viragem, um exame mais atento revela que ambos são antes complementares. E é justamente nesta complementaridade que reside o ponto central da articulação entre o princípio da atribuição de competência e a proteção dos direitos fundamentais no âmbito da União Europeia. Cabe ao Tribunal examinar o respeito aos princípios oriundos da proteção aos direitos fundamentais, assim como cabe aos Estados-Membros respeitar estes princípios, quando estiver em questão uma matéria do Direito Comunitário de competência das instituições. A vinculação entre proteção dos direitos fundamentais e atribuição de competências proposta pelo TJCE no âmbito comunitário mostra-se patente, também, na análise de um outro aspecto do desenvolvimento jurisprudencial desse sistema de proteção. Trata-se da questão sobre a competência externa das Comunidades, que assume papel central nesse processo a partir do momento em que o TJCE afirma que os instrumentos internacionais são fontes de inspiração dos princípios gerais a serem protegidos (TJCE, 1974, Nold). A questão relativa à competência das Comunidades para firmar acordos internacionais já havia sido enfrentada pelo TJCE num acórdão de 31 de março de 197110, que trata do acordo europeu sobre o trabalho de tripulações de transportes rodoviários (AETR). A questão que deu origem a esta sentença vinculava-se à competência das Comunidades para concluir acordos internacionais em nome dos Estados-Membros (competência externa), sem que houvesse previsão de atribuição desta nos Tratados. Assim, a Comissão e o Conselho foram ao Tribunal de Justiça, que decidiu pela atribuição de competência externa às Comunidades quando tal competência for necessária para cumprimento dos objetivos da associação interestatal.11 Este acórdão detém um papel fundamental no desenvolvimento do Direito Europeu, por mais de uma razão. Abordamos, a seguir, as duas que se relacionam diretamente com a proteção dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar, ao reconhecer tal competência externa às Comunidades, o TJCE recorreu à noção de competência implícita atribuída, estabelecida a partir da interpretação sistemática e teleológica dos Tratados em conjunto com os atos de direito 10 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal de 31 de março de 1971. Comissão das Comunidades Europeias contra Conselho das Comunidades Europeias (Processo C-22/70). Acórdão AETR. Luxemburgo: TJCE, 31 mar. 1971. Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=88062&pageIndex=0& doclang=pt&mode=lst&dir. Acesso em: 25 jul. 2024. 11 MOLINA DEL POZO, Carlos Francisco; DIZ, Jamile Bergamaschine Mata. La distribución de competencias en el nuevo diseño de la Unión Europea: del Acta Única Europea al Tratado de Lisboa. Revista da Facultad de Derecho y Ciencias Políticas, Medellín, Colombia, v. 43, n. 118, p. 15-59, ene./jun. 2013.
A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa 21 derivado que implementam seus objetivos – no caso, o Regulamento nº 543/69 relativo à harmonização de matéria social no domínio dos transportes coletivos. Em segundo lugar, e este é um ponto chave para o presente estudo, tal competência implicitamente atribuída às Comunidades para contratar no âmbito internacional, isto é, externo aos países membros, deveria se limitar às matérias cuja competência fora atribuída às Comunidades pelos Tratados, e, dentro deste âmbito, com natureza exclusiva, ou seja, não admitiria concorrência dos Estados-Membros12. Portanto, tem-se que o reconhecimento de que as competências atribuídas às Comunidades pelos Tratados devem produzir seus efeitos nas relações de Direito Comunitário intra e extra, estabelecendo a consolidação de competência implícita para firmar acordos internacionais que visem regular matérias vinculadas aos objetivos e finalidade extraídas pelo sistema jurídico comum. Nos termos do acórdão: Embora os artigos 74.° e 75.° [do Tratado CEE] não prevejam explicitamente a competência da Comunidade para a conclusão de acordos internacionais, a entrada em vigor, em 25 de Março de 1969, do Regulamento nº 543/69 do Conselho relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários (JO L 77, de 20.3.1969, p. 49) teve, contudo, como efeito necessário atribuir à Comunidade competência para concluir com Estados terceiros todos os acordos que se refiram à matéria disciplinada pelo mesmo regulamento13 (Consideração nº 28, grifo nosso). Estava pautada, assim, a problemática da adesão das Comunidades a um instrumento internacional de direitos fundamentais. Este ponto merece atenção, já que o acórdão AETR (1971) havia reconhecido a competência das Comunidades para firmar acordos internacionais, desde que estes versassem sobre tema de competência atribuída pelos Tratados; já no acórdão Nold, de 1974, e na jurisprudência analisada que o seguiu, ficou anunciada a possibilidade das Comunidades se inspirarem nos direitos fundamentais previstos em instrumentos internacionais. Ora, a partir dessa formulação, colocar-se-ia a reflexão sobre a possibilidade de adesão das Comunidades à Convenção Europeia de Direitos do Homem, isto é, 12 No caso do acórdão AETR, a competência explicitamente atribuída pelos Estados-Membros às Comunidades no Tratado de Roma é aquela que se relaciona com a política comum de transportes, prevista no nº 1 do artigo 75 deste Tratado: “En vue de réaliser la mise en oeuvre de l’article 74 et compte tenu des aspects spéciaux des transports, le Conseil, statuant à l’unanimité jusqu’à la fin de la deuxième étape et à la majorité qualifiée par la suite, établit, sur proposition de la Commission et après consultation du Comité économique et social et de l’Assemblée : a) des réglée communes applicables aux transports internationaux exécutés au départ ou à destination du territoire d’un État membre, ou traversant le territoire d’un ou plusieurs États membres, b) les conditions de l’admission de transporteurs non résidente aux transports nationaux dane un État membre, c) toutes autres dispositions utiles”. 13 TJCE, Processo C-22/70, op. cit.
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Corgozinho 22 adesão formal, para além de seu papel de inspiração das instituições comunitárias quando da apreciação de tais direitos. No ano seguinte, em 1972, o TJCE enfrentava novamente uma questão relativa à validade da atuação das instituições comunitárias face ao direito internacional. No acórdão International Fruit C14, o Tribunal teve de se manifestar sobre a vinculação do Direito Comunitário ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Segundo a fundamentação do acórdão, “para que a incompatibilidade de um ato comunitário com uma disposição de direito internacional possa afetar a validade deste ato, a Comunidade deve, antes de mais, estar vinculada por esta disposição”15 (Consideração nº 7). Ora, caso se siga tal raciocínio, a validade dos atos de Direito Comunitário só poderia ser impugnada à luz da CEDH se a Comunidade estivesse formalmente a ela vinculada. Uma vez que, dois anos depois deste acórdão (1974), todos os países da Comunidade já haviam ratificado a Convenção, a porta encontrava-se aberta para que o Tribunal, segundo sua própria jurisprudência, pudesse aplicar o disposto neste instrumento internacional. Conforme será analisado posteriormente, em 1994, foi exarado o Parecer 2/9416 que tratava justamente da adesão à CEDH por parte da União Europeia, no mesmo ano em que foi decidido o caso “Solange II” suscitado pelo Tribunal Federal Alemão, que tratava justamente da compatibilidade entre o sistema de proteção nacional dos direitos fundamentais e a primazia da norma europeia, segundo havia sido consagrada na sentença Costa x Enel.17 Tratava-se de caso em que a sociedade empresária alemã Wünsche acionou o Tribunal Administrativo de Frankfurt em virtude de supostas perdas e danos implicados por diversos regulamentos comunitários os quais, no intuito de resguardar o mercado europeu contra a importação barata de champignons e derivados, teriam obstaculizado o exercício de suas atividades mercantis.18 À vista do julgamen14 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Acórdão do Tribunal de 12 de dezembro de 1972. International Fruit Company NV e outros contra Produktschap voor Groenten en Fruit (Processos C-21 a C-24/72). Luxemburgo: TJCE, 12 dez. 1972. Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=88276&pageIndex=0&doclang= PT&mo. Acesso em: 25 jul. 2024. 15 Ibidem. 16 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA COMUNIDADE EUROPEIA (TJCE). Parecer 2/94 do Tribunal de Justiça de 28 de março de 1996. Adesão da Comunidade à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Luxemburgo: TJCE, 28 mar. 1996. Disponível em: http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d562ba130e3e5b432 791eef36a7823eccb.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxyLaNj0?text=&docid=99501&pageIndex= 0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=571488. Acesso em: 25 jul. 2024. 17 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata; JAEGER JÚNIOR, A. Por uma teoria jurídica da integração regional: a inter-relação direito interno, direito internacional público e direito da integração. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, p. 139-158, 2016. 18 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata; CARNEIRO, Caio A. de Castro. (Re)visitando o primado das normas de Direito Europeu: a evolução histórica da primazia e seus primeiros desdobramentos jurisprudenciais. Revista Jurídica, Curitiba, v. 4, n. 49, p. 255-284, 2017.
A evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia e a Carta de Direitos Fundamentais: de Roma a Lisboa 23 to de improcedência proferido pela Corte de Frankfurt, a parte autora recorreu ao Tribunal Federal Administrativo, que apresentou questão prejudicial ao TJCE. Ao decidir a matéria, o TJCE confirmou a legalidade dos regulamentos comunitários contrastados. Retornando os autos à Corte Administrativa, suscitou-se arguição de inconstitucionalidade, argumentando-se que a interpretação dos dispositivos comunitários pelo TJCE afrontaria a Lei Fundamental alemã. Com base no precedente da Sentença Solange I, teve ensejo um procedimento de controle concreto de constitucionalidade pelo BVerfG. No ano de 1986, o Tribunal Constitucional Federal alemão consignou que o TJCE é o juiz natural para dirimir conflitos sobre a interpretação e aplicação do Direito Comunitário, o que se corrobora pelas leis alemãs de aprovação dos tratados comunitários, em conformidade com os arts. 24, inc. I, e 59, inc. II, GG.19; 20 É justamente com base no art. 24, inc. I, GG da Lei Fundamental21 que se entendeu que havia uma cláusula constitucional que permitia a “abertura” para a transferência de poderes e competências às organizações internacionais nas quais a Alemanha fosse parte – entendida tal cláusula como um instrumento autorizativo de transferência de competências, reconhecendo-se, portanto, o dever de cumprir os atos emanados de tais organizações. Destarte, à diferença do julgado anterior, a Corte entendeu que a Comunidade Europeia possuía um grau de proteção dos direitos fundamentais semelhante em conteúdo, concepção e efetividade àquele observado na Grundgesetz, o que decorrera do desenvolvimento jurisprudencial emprestado a tais normas pelo TJCE desde Solange. Há que se observar, na esteira do que foi analisado anteriormente, que muito embora as conclusões tenham sido distintas, os fundamentos empregados em Solange II se coadunam com aqueles utilizados no julgado anterior: enquanto, e somente enquanto (Solange), o grau de proteção às normas jusfundamentais se mantiver, os atos praticados com base no direito europeu derivado estarão imunes ao controle do BVerfG. 19 Artigo 59 [Poder de representação internacional] (1) O Presidente Federal representa a Federação no âmbito internacional. Ele firma os tratados com Estados estrangeiros em nome da Federação. Ele acredita e recebe os chefes das missões diplomáticas. (2) Os tratados que regulem as relações políticas da Federação ou envolvam matérias da legislação federal, requerem a aprovação ou a intervenção dos respectivos órgãos competentes de legislação federal, sob a forma de uma lei federal. Para acordos administrativos aplicam-se por analogia as disposições relativas à administração federal (tradução livre). 20 DIZ; CARNEIRO, op.cit., loc. cit. 21 Artigo 24 [Transferência de direitos de soberania – Sistema coletivo de segurança] (1) A Federação pode transferir direitos de soberania para organizações interestatais, por meio de lei. (1a) Desde que os Estados sejam competentes para exercer os poderes estatais e cumprir as tarefas estatais, eles podem transferir, com a anuência do Governo Federal, direitos de soberania a instituições transfronteiriças em regiões vizinhas. (2) Com vista a salvaguardar a paz, a Federação pode aderir a um sistema de segurança coletiva mútua; para tal, aceita limitações aos seus direitos de soberania que promovam e assegurem uma ordem pacífica e duradoura na Europa e entre os povos do mundo. (3) Para dirimir as controvérsias internacionais, a Federação aderira aos acordos de arbitragem internacional de caráter geral, universal e obrigatório (tradução livre).
Jamile Bergamaschine Mata Diz e Pedro Campos Araújo Corgozinho 24 3. O exercício das competências em matéria de proteção dos direitos fundamentais pelo Tribunal de Justiça da União Europeia Agora bem, retornando a questão relativa à competência das Comunidades para aderirem formalmente à CEDH, essa seria remetida expressamente para o TJCE vinte anos mais tarde, em 1994, quando o Conselho da União Europeia solicitou um parecer22 junto à Secretaria do Tribunal de Justiça, questionando se a adesão da Comunidade Europeia à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950, é compatível com o Tratado que institui a Comunidade Europeia.23 Por si só, o Parecer emitido pelo Tribunal pode ser considerado como uma nota explicativa, quase de natureza doutrinária. Em vinte páginas, traça uma evolução do respeito aos direitos humanos pela Comunidade Europeia, convertendo-se em documento obrigatório para qualquer estudo que a investigue. Uma exposição minuciosa dos inúmeros pontos considerados pelo Tribunal renderia um estudo à parte. Um deles merece atenção e se impõe ao recorte desta análise jurisprudencial: a questão da competência. Neste sentido, a resposta do TJCE foi negativa: a Comunidade não teria competência para aderir à CEDH, a não ser que modificasse o Tratado e fizesse menção expressa da atribuição de competência específica. Tal e como explicitado no considerando nº 6 do referido Parecer: No estado actual do direito comunitário, a Comunidade não tem competência para aderir à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem, porque, por um lado, nenhuma disposição do Tratado confere às instituições comunitárias, em termos gerais, o poder de adoptar regras em matéria de direitos do homem ou de celebrar convenções internacionais. Neste domínio e, por outro, essa adesão não pode efectuar-se recorrendo ao disposto no artigo 235° do Tratado.24 Além disso, para uma alteração significativa do alcance do art. 235 do então Tratado da União seria necessário adotar novo dispositivo que possibilitasse a inserção da Comunidade, naquele momento, à CEDH e ao respectivo sistema institucional que a ampara. A jurisprudência do Tribunal comunitário concernente à proteção dos direitos fundamentais é realmente vasta, e como tal, optou-se, conforme mencionado na introdução deste artigo, por apresentar acórdãos que reforçam a interpretação restritiva (numa primeira fase) e, posteriormente, numa segunda fase adota uma interpretação conforme com os direitos fundamentais, baseado nas tradições comuns dos Estados e na influência da CEDH. Neste último caso, traz-se à baila um exemplo prático em que, nas conclusões apresentadas pelo Advogado Geral do 22 TJCE, Parecer 2/94, op. cit. 23 TJCE, Parecer 2/94, op. cit., p. 1. 24 TJCE, Parecer 2/94, op. cit., loc. cit.
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz