A cidadania e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 461 Costuma ser atribuída ao historiador José Murilo de Carvalho a divisão da cidadania em três dimensões: jurídica, sociocultural e política.4 A dimensão jurídica trataria daquela primeira dimensão de direitos fundamentais, isto é, dos direitos de liberdade. Ou seja, concebe o indivíduo na sua singularidade como alguém que precisa proteger sua vida, sua liberdade e os bens mais estritamente vinculados a si. A dimensão sociocultural considera o indivíduo enquanto parte de grupos sociais, de uma coletividade em concreto. A sua construção como sujeito passa pela dimensão coletiva de sentido que lhe é atribuída. Portanto, os seus direitos sociais, a sua ideia de uma vida digna juntamente aos demais, estão no foco dessa dimensão de cidadania. A dimensão política engloba um grupo mais alargado de direitos, sobretudo os de participação democrática. Pressupõe que, para a construção e afirmação das outras dimensões da cidadania, é necessário a efetiva realização da dimensão política, pois a representação coletiva do indivíduo requer que sua vontade livre possa ser democraticamente manifestada. Essas três dimensões constituem uma chave de leitura interessante para a compreensão da cidadania não apenas no Brasil, mas sobretudo no União Europeia, tendo em vista que o processo histórico de construção da cidadania europeia muito se assemelha com o percurso acima descrito, isto é, um caminho iniciado com a afirmação de direitos de liberdade que culmina na afirmação de direitos políticos. 3. Breve contextualização da construção da cidadania europeia Em uma apertadíssima síntese histórica será importante recordar os principais momentos do processo de construção da cidadania europeia. Embora já estivesse presente em momentos históricos anteriores ao período do pós-Segunda Guerra Mundial, será com os eventos que se sucederam a esse que veremos o lento surgimento do que podemos chamar, inicialmente, de um ideal de cidadania. Buscando inspiração na Paz Perpétua (Zum Ewigen Frieden), de Kant, sobretudo no direito cosmopolita idealizado por este, Habermas e outros filósofos mais recentemente propuseram uma revisão radical daquilo que Kant havia iniciado, ampliando a noção de cidadania para uma perspectiva universal.5 Entretanto, essas discussões filosóficas típicas no final do século XX e início do século XXI só foram possíveis na Europa porque um percurso de construção de instituições supranacionais foi trilhado nas décadas precedentes. O primeiro grande passo foi dado com a Comunidade Europeia do Carvão e Aço (CECA), instituída com o Tratado de Paris, em 18 de abril de 1951. Antonio 4 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 5 Ver HABERMAS, Jürgen. Die postnationale Konstellation. Frankfurt: Verlag, 1998, trad. it. HABERMAS, Jürgen. La costellazione postnazionale. Milano: Feltrinelli, 2002.
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