Democracia e cidadania no MERCOSUL entre o veneno e a cura: estruturas intergovernamentais e a autocontenção (ou falta de ousadia) como qualidade institucional 537 manteve o processo decisório da organização no campo da política dos Estados e, muitas vezes, refém da burocracia técnica diplomática. As cúpulas sociais, que ocorriam paralelamente às cúpulas de presidentes, dificilmente direcionavam os encaminhamentos finais das resoluções e decisões aprovadas. Sob a perspectiva democrática interna, o MERCOSUL não conseguiu, assim, entre 1991 e 2015 estruturar o pleno exercício da cidadania em seus processos deliberativos internos e em suas estruturas institucionais.20 No plano democrático externo, interestatal, o MERCOSUL, que não possuía instrumentos para acompanhar ou mesmo reagir a eventos políticos sensíveis ocorridos em seus membros até janeiro de 200221, teve que lidar, ao menos em três momentos específicos, com tensões democráticas nos processos políticos internos de seus Estados Partes. A cláusula democrática do MERCOSUL, conforme introduzido anteriormente, foi aplicada por Argentina, Brasil e Uruguai, em 2012, para suspender a República do Paraguai da participação nos órgãos decisórios da organização. Restou claro, naquele episódio, que o enquadramento ou não no estabelecido em Ushuaia possuía forte grau de discricionariedade e que a análise jurídica da aplicação do tratado se restringia a seus aspectos procedimentais sem possibilidade de ingresso no mérito para a definição de “democracia”, por exemplo.22 Suspenso, o Paraguai retoma suas prerrogativas de membro pleno apenas após novas eleições presidenciais23. Havia, naquelas circunstâncias forte alinhamento político entre os governos que aplicaram a cláusula democrática ao Paraguai e esse panorama facilitou sobremaneira não apenas o alcance de um consenso a respeito de um conteúdo mínimo ao significado de democracia que permitisse o enquadramento dos eventos de junho de 2012 em Assunção no previsto no Protocolo, mas garantiu também agilidade na tomada de decisão pela suspensão. Em 2016, em contexto no qual na Argentina havia sido recentemente eleito um governo liberal econômico com contornos conservadores e no Paraguai desde os eventos de 2012 o cenário político não se modificava substancialmente, os eventos ocorridos no Brasil entre fevereiro e agosto não alcançaram nível de consenso mínimo para nem mesmo ingressar na pauta da organização regional à luz de Ushuaia. Na sequência, a situação mostrou-se bastante desafiadora em 2016 quando das iniciativas para o enquadramento da República Bolivariana da Venezuela nos termos 20 VASCONCELOS, Raphael Carvalho; MARQUES, S. M. T. Confabulação sobre os 30 Anos do MERCOSUL. In: NEGRO, Sandra C.; VIEIRA, Luciane Klein. MERCOSUL 30 Anos: passado, presente e futuro. São Leopoldo: Casa Leiria, 2021. p. 21-34. 21 Quando da entrada em vigor do Protocolo de Ushuaia. 22 TRIBUNAL PERMANENTE DE REVISÃO DO MERCOSUL (TPR). Laudo nº 01/2012 do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL sobre o Procedimento Excepcional de Urgência apresentado pela República do Paraguai. Assunção: MERCOSUL, 21 jul. 2012. Disponível em: https://www.tprmercosur.org/es/docum/laudos/Laudo_01_2012_es.pdf. Acesso em: 29 abr. 2024. 23 Quando Horácio Cartes foi eleito em 2013.
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