Democracia e cidadania no MERCOSUL entre o veneno e a cura: estruturas intergovernamentais e a autocontenção (ou falta de ousadia) como qualidade institucional 539 reção que sopraram os ventos políticos na América Latina. Essa adaptabilidade não oculta, contudo, os desafios que sua institucionalidade enfrenta para promover a participação cidadã e garantir a higidez democrática na região. Logo de sua fundação, a iniciativa de integração assistiu ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, no Brasil, e anos depois, à tentativa de golpe de Estado no Paraguai contra o presidente Juan Carlos Wasmosy. Mais do que mero espectador, resta claro que o MERCOSUL, ainda que modestamente como foro político regional incipiente, assistiu bem à democracia regional nessas crises. O Protocolo de Ushuaia é, nesse contexto, resultado de um processo de amadurecimento institucional que, para além da perspectiva liberal econômica do livre comércio, esforçava-se para incorporar nos anos 90 em sua dimensão jurídica os parâmetros teóricos e simbólicos das democracias liberais ocidentais. Críticas podem ser feitas a uma suposta instrumentalização ideológica do mecanismo de Ushuaia, mas qualquer análise mais detida tende ao reconhecimento de grande êxito na sua aplicação. O texto do Protocolo de Ushuaia, reitera-se, é intencionalmente lacônico e não define critérios objetivos para a identificação de uma “ruptura na ordem democrática”, deixando a cargo da diplomacia e da política o preenchimento de seu conteúdo caso a caso. Nessa dinâmica, o Protocolo foi aplicado ao Paraguai, em 2012, quando um presidente progressista foi derrubado, e à Venezuela, em 2017, contra um governo progressista. O consenso político entre os outros membros da organização é, inclusive, o caminho indicado pelo tratado para a identificação de uma ruptura democrática26. A decisão política é, portanto, a tônica da aplicação de Ushuaia em importante lição que o direito internacional mais uma vez dá às tentativas de outros ramos do direito de ocultar decisões políticas em teorias jurídicas. A democracia, na dimensão externa do MERCOSUL, é, em todo esse contexto, administrada pelos Estados Partes da mesma forma que o comércio de geladeiras e sapatos. Essa é a realidade possível e talvez tenha mais a ver com responsabilidade institucional do que com omissão. Uma intergovernabilidade ampla e essencial para a existência dessa organização regional de integração. Mas, e o povo? O povo não está no MERCOSUL. Não participa e não pode participar de seus processos, como não participa na maioria das organizações internacionais, e como não participa também na maioria dos governos de Estados que possuem constituições lhe reconhecem a titularidade do poder. Talvez esse não seja, na verdade, um problema do MERCOSUL – em reflexão que pretende convocar esse debate a um panorama mais amplo que não cabe nestas poucas linhas: é preciso imaginar caminhos para a participação direta do povo nos processos políticos regionais e abrir espaços para que a sociedade civil organizada possa não somente ter voz, como ajudar a pautar o avanço das políticas a serem adotadas regionalmente, em todas as matérias. 26 A não aplicação de Ushuaia aos eventos ocorridos no Brasil, em 2016, tem aqui sua explicação.
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz